Empréstimo Consignado Indevido e Não Contratado em Benefícios do INSS: A Responsabilidade das Instituições Financeiras e os Direitos dos Aposentados
- Dra. Ludmilla Ferreira dos Anjos
- 30 de jul.
- 6 min de leitura
1. Introdução: A vulnerabilidade do aposentado e a prática abusiva do crédito consignado
O crédito consignado, criado com o objetivo de oferecer aos segurados do INSS uma forma segura e acessível de obter crédito, tem se tornado, paradoxalmente, um terreno fértil para fraudes e abusos praticados por instituições financeiras. Com o desconto automático em folha de pagamento, essa modalidade deveria garantir segurança e transparência. Contudo, aposentados e pensionistas têm sido surpreendidos com empréstimos que jamais contrataram, sem qualquer ciência prévia ou autorização formal.
A questão é extremamente grave. Em muitos casos, os aposentados sequer percebem os descontos em seus benefícios, já que os valores são relativamente pequenos e diluídos em parcelas longas. Quando identificam a fraude, muitas vezes o prazo prescricional já está em curso ou houve prejuízo financeiro acumulado. A prática é lesiva, fere a dignidade da pessoa idosa, viola normas do Código de Defesa do Consumidor e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), além de contrariar os princípios constitucionais da legalidade, boa-fé e da função social dos contratos.
Este artigo se propõe a analisar juridicamente a questão dos empréstimos consignados indevidamente lançados nos benefícios do INSS, os direitos do segurado lesado, e os caminhos legais para buscar reparação, com respaldo na legislação, jurisprudência e doutrina.
2. A natureza do empréstimo consignado e os requisitos legais para sua validade
O empréstimo consignado é regulamentado pela Lei nº 10.820/2003 e pelo Decreto nº 10.820/2021. Trata-se de contrato firmado entre o aposentado/pensionista e uma instituição financeira, cujo diferencial é o desconto automático da parcela diretamente do benefício previdenciário. Por envolver verba alimentar e público vulnerável, a legislação exige consentimento expresso, inequívoco, formalizado com clareza, além de ampla transparência quanto às condições da contratação.
Portanto, para que o empréstimo seja válido, é essencial:
Que o beneficiário tenha autorizado expressamente a contratação;
Que haja comprovação documental, como proposta assinada ou gravação de voz;
Que o contrato esteja previamente registrado no sistema do INSS (via Meu INSS ou Dataprev);
Que a margem consignável não seja ultrapassada (máximo de 45% do benefício, conforme limites legais).
Quando qualquer desses requisitos é desrespeitado, a contratação é nula de pleno direito. Não se admite presunção de consentimento ou autorizações genéricas. A ausência de prova de contratação configura prática abusiva e impõe a devolução dos valores cobrados, além de possível indenização por dano moral.
3. Responsabilidade civil da instituição financeira e o dever de indenizar
A jurisprudência dos tribunais superiores tem sido firme no sentido de que a instituição financeira responde objetivamente pelos danos causados ao consumidor, nos termos do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor. Em casos de empréstimos consignados indevidamente lançados, não se exige culpa ou dolo da empresa — basta a comprovação do dano e do nexo causal.
O Superior Tribunal de Justiça já consolidou o entendimento de que o banco tem o dever de conferir a autenticidade da contratação, sendo intransferível sua obrigação de checar a veracidade da operação. A prática de lançar consignações sem a devida formalização é considerada falha na prestação do serviço e impõe:
A restituição dos valores cobrados indevidamente, preferencialmente em dobro (art. 42, parágrafo único, do CDC);
A suspensão imediata dos descontos, mediante tutela de urgência;
A indenização por danos morais, especialmente quando houver reiteração da conduta, negligência no atendimento ao consumidor ou impacto significativo na vida do aposentado.
Além disso, o banco pode ser responsabilizado com base na LGPD, caso tenha havido compartilhamento ou uso indevido de dados pessoais do segurado.
4. Caminhos legais para o aposentado lesado: tutela judicial e extrajudicial
O primeiro passo para o aposentado que desconfia de empréstimo não contratado é acessar o extrato de consignações no site ou aplicativo Meu INSS. Verificada a irregularidade, é possível tentar inicialmente a solução administrativa, junto ao banco ou à ouvidoria do INSS. Contudo, na maioria dos casos, o problema só é resolvido por meio de ação judicial.
Na via judicial, o advogado poderá pleitear:
Tutela antecipada para cessar imediatamente os descontos indevidos;
Declaração de inexistência de débito;
Repetição do indébito em dobro;
Indenização por danos morais;
Multa por descumprimento de decisões liminares (astreintes), se aplicável.
Importante ressaltar que não há obrigação de contratar empréstimo por parte do beneficiário do INSS. Muitos bancos alegam "proposta telefônica" ou "assinatura digital", mas não conseguem provar a autenticidade. A inversão do ônus da prova é autorizada em favor do consumidor idoso, dada a hipossuficiência técnica e informacional, com base nos artigos 6º, inciso VIII, e 14 do CDC.
5. Caso prático: A comprovação de falsidade de assinatura em contrato de empréstimo consignado – um precedente importante
Um exemplo emblemático que ilustra perfeitamente os abusos praticados por instituições financeiras no âmbito do crédito consignado é o caso julgado pela 25ª Vara Cível da Comarca de Goiânia/GO, em que atuei na defesa de um aposentado. O autor da ação foi surpreendido com descontos mensais em seu benefício previdenciário, decorrentes de dois contratos de empréstimo consignado que jamais contratou. O agravante da situação é que o aposentado é pessoa idosa e sofreu um acidente vascular cerebral (AVC), o que acentua sua condição de hipervulnerabilidade, tanto física quanto informacional.
Apesar da alegação da instituição financeira de que os contratos haviam sido firmados por portabilidade de dívida e apresentando documentação digitalizada, foi deferida a produção de perícia grafotécnica, a qual concluiu categoricamente que as assinaturas constantes nos contratos eram falsas. O laudo pericial foi elaborado com rigor técnico e apresentou evidências suficientes para afastar a autenticidade das assinaturas, demonstrando a existência de fraude contratual.
Com base na robustez da prova pericial e no conjunto fático-jurídico dos autos, o Juízo reconheceu a inexistência dos contratos e determinou a restituição em dobro dos valores descontados indevidamente do benefício do aposentado, nos termos do artigo 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor. Além disso, condenou a instituição financeira ao pagamento de R$ 5.000,00 a título de danos morais, reconhecendo o impacto direto da conduta lesiva na dignidade e na saúde emocional do autor, especialmente em razão de sua condição clínica. Vejamos:

A sentença também foi enfática ao destacar que a responsabilidade do banco não se limita à formalização do contrato, mas abrange o dever de diligência, transparência e boa-fé na verificação da autenticidade das contratações. O julgador ressaltou ainda o caráter reparador e punitivo da indenização, ao passo que sua função não é apenas compensatória, mas também pedagógica, inibindo a repetição da prática abusiva.
Esse caso concreto reforça a necessidade de atuação jurídica especializada e firme diante de irregularidades contratuais cometidas contra aposentados e pensionistas. O uso de perícia técnica, combinado à inversão do ônus da prova em favor do consumidor vulnerável, revelou-se essencial para a efetivação da justiça e para o restabelecimento da legalidade contratual.
6. Conclusão: A proteção da dignidade do aposentado como princípio jurídico
A prática de descontos indevidos por meio de empréstimos consignados não contratados representa uma das faces mais perversas da violação dos direitos de aposentados e pensionistas no Brasil. O uso indevido de dados, a falsificação de assinaturas e a negligência das instituições financeiras ao validarem contratações sem o mínimo rigor, demonstram um cenário alarmante de desrespeito à dignidade da pessoa humana.
A jurisprudência e a legislação são claras ao garantir que o consumidor, especialmente aquele em condição de vulnerabilidade, deve ser protegido de práticas abusivas. O caso concreto apresentado neste artigo, em que obtive sentença favorável com base em laudo pericial grafotécnico, é a prova viva de que o Poder Judiciário pode e deve ser instrumento de justiça real — especialmente quando há atuação jurídica qualificada e comprometida.
Esse precedente demonstra que a atuação técnica, embasada e diligente do advogado é essencial para proteger não apenas os direitos individuais do cliente, mas também a legalidade do sistema como um todo. A restituição em dobro dos valores indevidamente descontados, a indenização por danos morais e a declaração de inexistência do contrato representam não apenas uma vitória pessoal, mas um marco de resistência contra o avanço silencioso de fraudes estruturais.
Mais do que nunca, é imprescindível que aposentados e pensionistas estejam atentos, fiscalizem seus extratos e busquem orientação jurídica ao menor sinal de irregularidade. E, ao advogado que os representa, cabe o dever ético e profissional de empunhar a Constituição, o Código de Defesa do Consumidor e os princípios do devido processo para assegurar, com firmeza e humanidade, que o direito seja não apenas reconhecido — mas respeitado, reparado e cumprido.
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